Depois do Cirque de Soleil, da turnê de shows da Cláudia Leitte e do blog da Maria Bethânia, a Lei Rouanet agora poderá ajudar o setor de moda, que estaria em "crise".
As informações estão na edição deste sábado da Folha de São Paulo. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/99982-em-crise-moda-deve-ser-incluida-na-lei-rouanet.shtml
A ideia é identificar estilistas com dificuldades financeiras e que tenham um trabalho "autoral" para autorizar a captação de recursos via renúncia fiscal.
Grandes grifes de luxo que atuam no Brasil admitem publicamente suas dívidas e estão desesperadas para angariar dinheiro e manter seu trabalho.
O Minc diz que haverá critérios de avaliação para evitar que corporações com fins exclusivamente comerciais sejam beneficiadas.
Não, não estou dizendo que moda não é cultura, longe disso.
Mas daí a me convencer que ela não está ali para lucrar é outra conversa.
E tem outra.
Da mesma forma como nos casos do espetáculo circense para poucos privilegiados, não concordo em se utilizar uma lei de incentivo à cultura para servir a um setor da economia que ali está para esbaldar as excentricidades de uma elite econômica.
Sem essa, por favor, de que gera emprego nos desfiles e nas fábricas. Explora o trabalho de um punhado de gente, isso sim.
Ou nos esquecemos de mais um episódio de confinamento de bolivianos em situação análoga à escravidão por mega corporações internacionais?
Foi em São Paulo, ontem, que os fiscais do ministério do Trabalho libertaram 29 pessoas em uma fábrica terceirizada pelas grifes Cori, Luigi Bertolli e Emme.
Pelejavam 13 horas por dia, pagavam dívidas da viagem com o serviço, e ganhavam R$4 por peça de roupa confeccionada.
Por quanto esse vestuário era vendido nas lojas? R$400, R$4000?
É essa espécie de atentado recorrente aos direitos humanos mais básicos que o Minc vai apoiar?
O pescador, que mesmo sem vara e anzol, ainda pega e distribui o peixe
Quem precisa de verdade dos recursos disponibilizados por meio da Lei Rouanet está nos mais profundos rincões do país fazendo cinema, circo, teatro, dança e música popular para quem carece absurdamente de cultura e não tem como pagar por ela.
Sem dinheiro, enfrenta batalhas insanas diariamente para se manter, e, aos poucos, desaparece. Com ele, vai embora também a esperança de tornar o brasileiro não só um consumidor alienado da cultura de massa, mas sim um indivíduo que não se submete à ordem sob qualquer justificativa e se torna o tal do cidadão.
Some o sorriso da criança com o palhaço que faz estripulias no picadeiro improvisado, o operário que toma consciência de sua importância no mundo pela encenação de uma peça na rua ou a dona de casa que conhece a luta pelos direitos das mulheres na apresentação de um filme em uma pequena sala.
Está na hora de parar de tratar cultura como mistura no prato de quem só tem arroz e feijão.
É item de primeira necessidade na cesta básica.
Elemento transformador, mola propulsora das revoluções, símbolo de qualidade de vida.
Disponibilizar um vale de R$50 por mês por pessoa em meio a tantos recursos não destinados ao incentivo da cultura que alcança a maioria da população a mim parece brincadeira de mau gosto ou mais do velho assistencialismo capenga.
Custeia no máximo duas entradas para o cinema do shopping ou uma para a peça encenada por globais, não paga nem o ingresso mais barato para um espetáculo de dança no Teatro Municipal, muito menos uma ópera na Sala São Paulo.
Digo isso para ficar nos exemplos tradicionais do consumo de cultura de classe média de uma metrópole, que têm uma procura maior do grande público, mas estão quase sempre inacessíveis ao povo por conta do preço, da localização e por muitos outros motivos.
Aí você tem essa "grana" disponível para torrar em uma cidade pequena qualquer do interior do Brasil e vai fazer o que?
Talvez compre uma "revista porcaria", como sugeriu nossa ministra Marta Suplicy, ao anunciar o benefício.
Não seria o caso de lá aparecer, nem que fosse uma vez por mês, uma trupe de artistas que não cobrasse nada, mas que tivesse recursos para seguir disseminando essa cultura em outros lugares!?
Existem sim algumas que o fazem, das mais diferentes formas e abordagens, com apoio estatal ou não, mas são poucas gotas d'água perto de nossa imensidão.
O faturamento das altas cifras, por outro lado, continua em formato de enxurrada.
Isso acontece porque a Rouanet é uma lei interessante na teoria, mas completamente difusa e servente dos interesses do mercado na prática.
As empresas que pretendem "incentivar a cultura" querem seu nome ainda mais alto no palco, apostam geralmente em artistas e espetáculos consagrados, que vão lhes garantir não só o benefício da renúncia fiscal como ainda mais ganhos a partir da venda dos ingressos.
Se a norma já rende altos dividendos aos bancos, operadoras de telefonia, construtoras e outras companhias que estão por trás de shows e apresentações culturais em geral, imagine você uma parceria com Huis Clos, Louis Vitton e outras grifes consagradas no SPFW.
Um sucesso estrondoso!
Mas só para os VIP's, of course.