Apesar de passados dez dias desde o último suspiro de folia em Salvador, com o arrastão da quarta-feira de cinzas de Carlinhos Brown e Ivete Sangalo, a agonia das réstias deixadas pela "maior festa popular do mundo" só termina neste domingo, prazo dado para o desmonte das estruturas dos camarotes nos três circuitos do carnaval.
No entanto se mantém nos outdoors por toda a cidade os agradecimentos de bandas, blocos e dos próprios camarotes à presença maciça do público durante os festejos, sua animação e vibração perante a música, a azaração e todos os demais elementos cristalizados na cabeça dos milhares de participantes destes infindáveis redutos elitizados dentro da tal festa popular.
E de onde vem essa elitização? Fenômeno atual? Construção histórica?
Como pesquisador, estive na última semana catalogando material referente ao sambista Assis Valente, compositor de canções que fizeram sucesso nas vozes de gente como Carmen Miranda, João Gilberto, Chico Buarque, Nara Leão, Elis Regina e Luiz Gonzaga, entre outros. O trabalho faz parte da colaboração para a biografia de Assis, que será escrita por Gonçalo Júnior.
Também foi alvo de minha atenção a celebração momesca das três primeiras décadas do século XX, época em que o saudoso sambista compunha aos borbotões, e quando os pulos de alegria de trabalhadores, patrões e famílias já eram dados de maneira discriminada, conforme conta o historiador baiano Cid Teixeira no livro
Carnaval na Bahia - Um registro Estético.Em seu texto intitulado "Carnaval entre as duas guerras" Teixeira esmiúça, de forma direta, toda a depreciação da imprensa com relação aos grupos de Afoxé, formados apenas por negros, bem como a clara separação dos blocos populares, frequentadores da Baixa dos sapateiros, e os empresários que colocavam as filhas para desfilar em suntuosos carros alegóricos no centro.
Durante os "loucos anos 20" as mulheres começavam a se desprender quanto às fantasias e vestimentas, os homens endinheirados inventavam fantasias exageradas mas distintas, querendo a volta dos clubes onde se separavam das classes menos favorecidas, e o povo destilava sua ironia e crítica aos políticos nas marchinhas.
Quando o cancioneiro popular se volta contra as elitesFoi a partir dessas músicas, como as criadas pelo mestre Aristides Júlio de Oliveira, conhecido como Moleque Diabo, que candidatos à presidência como o mineiro Artur Bernardes e ditadores como o gaúcho Getúlio Vargas e seus integralistas foram malhados. Nesse momento surgiram outros músicos do gênero, como Josué de Barros, Assis Valente e Dorival Caimmy.
Dorival Caimmy era membro do conjunto
Três e Meio, formado também por Alberto Costa, Zezinho Rodrigues e Adolfo Nascimento, o Dodô, um dos criadores do Trio Elétrico em 1950.
Após o fim do grupo, ao lado de Osmar, Dodô popularizou o som amplificado do frevo pernambucano e das composições da dupla em cima da chamada Fubica, pequeno carro recheado de adereços que deu origem ao que hoje se transformou em um instrumento de apelo comercial incomensurável no carnaval da Bahia e nas micaretas pelo Brasil.
Uma invenção genial, como o avião de Santos Dumont, da mesma forma utilizada para princípios completamente distoantes do ideal de seus inventores.
Expansão e mercantilização elétricaSem delongas quanto à história dos 60 anos do Trio Elétrico, algo que a TVE da Bahia vem desenvolvendo com vídeos bem informativos nas últimas semanas, me resumo a comentar o ponto onde se chegou através dele, que é a exploração do espaço nos circuitos pelos blocos fechados - com cordas, onde se paga para curtir a banda sem se misturar à "pipoca".
A área ocupada pelos que podem pagar pelos blocos de Chiclete com Banana, Claudia Leite e outros, unida às demandas gigantes dos camarotes, transforma a pipoca em sardinha, que ainda divide espaço com os catadores de latinhas e vendedores ambulantes, quando não são ainda mais espremidos pelos cordeiros, que obedecem à ordens superiores para achatar os desprivelegiados.
De toda essa pendenga, some-se a quantidade de lixo despejada e a urina eliminada em plena rua, a truculência policial, os furtos e brigas totalmente imbecis, e pense aí, na "maior festa popular do mundo", toda bonitinha e enfeitada pelo poder público para todos, mas aproveitada realmente por quem pode pagar por um lugar longe da "gentalha".
Sim, alguns elementos conseguem se divertir, porque vão aos blocos independentes, exemplificados por Armandinho - filho de Osmar, Novos Baianos, Moraes Moreira e outros, sem serem ameaçados por cotoveladas, cacetetes, pisões ou cordas, ou se esforçam para assistir a sensacionais blocos afro, como o tradicionalíssimo Ilê Ayiê, quando sai do Bairro da Liberdade.
Não venho aqui citar grupos musicais ou blocos para comparar qualidades, gostos ou opiniões, mesmo sendo contra essa bobagem de "Música do Verão", e modinhas como "Rebolation" ou "Lobo Mau", mas quero deixar meu pesar pela transformação estapafúrdia dessa festa num comércio sem fim que parte deles transformou a curtição que deveria ser da galera.
Amanhã, quando toda a parafernália metálica dos camarotes finalmente deixar a avenida, pode ser o momento de pensar nessa descontrução material e também conceitual, um processo complexo de reflexão sobre os seis dias de folia. Circuito novo? Mais segurança? Higiene de primeira? Nada disso vai adiantar enquanto o carnaval de Salvador não for democratizado.